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Ideal Axadrezado #017 - O Boavista é Nosso: Fazer a Nossa Parte

Ideal Axadrezado #017 - O Boavista é Nosso: Fazer a Nossa Parte
Um jovem boavisteiro não segura apenas uma bandeira; carrega o futuro de um clube que será aquilo que decidirmos (re)construir

O pesadelo concretizou-se em Arouca

Cerca de 2000 boavisteiros fizeram a viagem para um jogo decisivo, num daqueles gestos de amor que só o futebol sabe proporcionar. Precisávamos de um milagre tripartido: vencer o Arouca e esperar que tanto o AFS como o Farense perdessem os seus jogos. Dois terços do milagre aconteceram: AFS e Farense caíram nas suas partidas.

Mas a parte que dependia de nós, infelizmente, não se concretizou. Frente a um Arouca tranquilo na tabela, acabámos por perder por 4-1, selando o nosso destino. Depois de 11 temporadas na primeira divisão, o Boavista despede-se do primeiro escalão.

A ironia mais cruel? Tivesse o resultado do nosso jogo sido uma vitória, e estaríamos neste momento ainda a encarar a possibilidade de permanência através do playoff. Um desfecho previsível, mas nem por isso menos doloroso para quem viveu toda a época à beira do abismo.

Entrada em falso compromete ambições

A entrada em jogo não foi a que esperávamos para uma partida decisiva. Apesar do apoio impressionante dos nossos adeptos, que praticamente encheram o Municipal de Arouca, a equipa parecia tensa, nervosa com o peso do momento.

E cedo essa tensão foi explorada pela equipa da casa. Logo aos 7 minutos, Miguel Puche, com um remate fortíssimo de meia distância, inaugurou o marcador, deixando Vaclik sem hipóteses. Um golpe duro, mas a verdadeira sentença parecia ter chegado aos 17 minutos, quando Alfonso Trezza fez o 2-0 depois de um lance confuso na área.

Com dois golos a perder numa partida em que só a vitória interessava, parecia que o pesadelo se materializava com demasiada rapidez. Mas, como tem sido apanágio desta época, o Boavista nunca baixou os braços. E Bozenik deu um novo alento aos panteras, reduzindo para 2-1 aos 22 minutos, após assistência de Diaby.

O problema é que a mesma defesa que permitiu dois golos nos primeiros 20 minutos voltou a fraquejar logo a seguir. Henrique Araújo, precisamente três minutos depois do nosso golo, repôs a vantagem de dois no marcador, concluindo uma transição rápida do Arouca.

Notícias distantes, esperança renovada, desilusão final

Na segunda parte, como uma equipa que sabe que não tem nada a perder, lançámo-nos ao ataque sem medo das consequências. A partida transformou-se num autêntico "bola vai, bola vem", com oportunidades de parte a parte, mas a eficácia continuou a faltar-nos.

E então chegou a notícia: tanto o Farense como o AVS estavam a perder os seus jogos. Uma vitória nossa colocar-nos-ia no playoff. Um daqueles momentos em que o futebol parece escrever um guião dramático para elevar as emoções ao máximo. O banco de suplentes, os adeptos, todos sentiam que, talvez, o impossível ainda fosse possível.

Mas a pressão, a ansiedade e as fragilidades defensivas acabaram por falar mais alto. O Arouca aproveitou os muitos espaços que a nossa equipa deixava na defesa, criando várias situações claras de golo. Só a falta de eficácia e algumas intervenções de Vaclik impediram que o resultado se tornasse mais dilatado mais cedo.

No último minuto de descontos, como que para confirmar a crueldade do momento, Dylan Nandín estabeleceu o resultado final em 4-1, pregando o último prego no caixão das nossas esperanças.

Um futuro incerto, mas com a convicção de quem já sofreu e sobreviveu

No final da partida, a imagem dos nossos jogadores de joelhos no relvado contrastava com a presença inabalável dos nossos adeptos nas bancadas, cantando e apoiando até ao último momento. Uma cena que resume bem o que é ser boavisteiro: a capacidade de manter a dignidade mesmo nos momentos mais difíceis.

Para um clube que já viveu tanto – incluindo uma descida ao Campeonato de Portugal há pouco mais de uma década – este é apenas mais um capítulo de uma história que, temos a certeza, ainda terá muitas páginas. Se algo a história do Boavista nos ensina é que o Boavista pode cair, mas nunca morre.


O Sistema Que Nos Falhou

Reflicto hoje sobre o sistema que permitiu chegarmos aqui. A cultura de presidencialismo extremo que domina o nosso clube há décadas criou uma distância perigosa entre quem decide e quem vive o clube. Criamos, sem querer, pequenos feudos de poder onde poucos decidem por muitos, sem verdadeira prestação de contas.

Este modelo já mostrou repetidamente suas falhas. Vivemos ciclos de esperança e desilusão, sempre com promessas de mudança que nunca se concretizam totalmente. A transição de lideranças raramente significa renovação completa – é frequente vermos as mesmas influências persistirem nos bastidores, perpetuando práticas ultrapassadas.

A Voz Dos Sócios

O paradoxo é cruel: um clube fundado em valores democráticos acabou por se afastar deles na práctica. Esquecemos que a essência do Boavista está na sua massa associativa, nos seus adeptos apaixonados, e não nas figuras que temporariamente ocupam cargos.

Enquanto sócios, abdicamos demasiadas vezes do nosso poder. Aceitamos comunicações escassas, decisões opacas, estratégias questionáveis. Comparecemos aos jogos, renovamos quotas, mas raramente exigimos ser parte activa nas decisões estruturantes.

Na prática, transferimos o "ser Boavista" para terceiros, como se o clube fosse uma entidade separada de nós. Nada mais errado. O Boavista somos nós – todos nós.

Perguntas Que Não Posso Calar

A despromoção agora confirmada apenas torna mais urgentes questões que já deveriam ter sido respondidas há muito quer pelo Clube, quer pela sua SAD:

Que plano concreto existe para esta nova realidade financeira? A descida à Segunda Liga não foi um imprevisto de última hora – era um cenário previsível há meses. Que preparação foi feita?

Como se equilibrarão as contas com a quebra dramática de receitas? Que garantias existem para funcionários, formação e modalidades?

Qual é, verdadeiramente, o compromisso do investidor maioritário com o projeto desportivo? Que visão existe para além da gestão de crise permanente?

Por que razão continuamos sem uma data para a Assembleia Geral prometida? O que impede um diálogo franco entre direção, SAD e sócios?

Um Novo Caminho

O futebol moderno oferece exemplos de clubes que, mantendo sua identidade histórica, adaptaram suas estruturas para maior transparência e eficiência. É tempo de aprendermos estas lições.

Precisamos urgentemente de:

  • Comunicação regular e transparente com os sócios, não apenas sobre resultados desportivos, mas sobre decisões estratégicas
  • Reuniões periódicas de prestação de contas, seguindo o modelo de "relatórios trimestrais" das empresas modernas
  • Metas claras, mensuráveis e com prazos definidos para cada área do clube
  • Participação efetiva dos sócios em decisões estruturantes, para além do mero voto em eleições

A actual direção herdou problemas graves, é certo. Mas isso não pode servir de escudo permanente contra a necessidade de transparência e acção decisiva.

A Nossa Responsabilidade

Talvez a reflexão mais dolorosa que faço hoje seja sobre nossa própria responsabilidade neste processo. O amor incondicional que nos define como adeptos do Boavista tem um lado sombrio: a tolerância excessiva com prácticas que prejudicam o clube a longo prazo.

Quantas vezes criticamos quem levantou questões inconvenientes? Quantas vezes preferimos o conforto da esperança vaga à desconfortável exigência de resultados concretos?

Para muitos, o clube é um refúgio emocional, um espaço de pertença que transcende vitórias e derrotas. Esta ligação profunda é preciosa, mas não pode significar aceitação passiva.

Uma Nova Esperança

Apesar de tudo, mantenho uma certeza: o Boavista sobreviverá. Já passou por tempestades piores e ressurgiu. Temos na nossa história exemplos extraordinários de resiliência que poucos clubes podem igualar.

Mas sobreviver não é o mesmo que prosperar. Para que o clube volte a ser relevante no panorama nacional, precisamos de mais do que resistência – precisamos de renovação profunda.

Esta descida pode ser, paradoxalmente, uma oportunidade para repensarmos coletivamente o que queremos para o futuro. Um momento para reorganizar estruturas, clarificar propósitos, e sobretudo, reafirmar o papel central dos sócios na vida do clube.

No final, são os adeptos que permanecem quando jogadores, treinadores e dirigentes partem. É nas bancadas do Bessa que bate o coração verdadeiro do Boavista.

Vi famílias inteiras unidas na dor da descida, a minha incluída. Vi gerações diversas a partilhar o mesmo sentimento de pertença. Esta é a verdadeira força do Boavista – não os títulos do passado ou os recursos financeiros, mas a comunidade viva que pulsa em torno do nosso xadrez.

Nós, boavisteiros, somos conhecidos pela nossa capacidade de erguer-nos nas maiores adversidades. Esta é mais uma prova no nosso caminho. Que seja também um ponto de viragem para um clube mais transparente, participativo e fiel aos valores que o fundaram.

O Boavista pode ter caído, mas o nosso amor, a nossa responsabilidade e a nossa capacidade de exigir melhor não podem cair. Porque o Boavista é nosso e há-de ser... mas só se todos fizermos a nossa parte.

P'lo bem do Boavista. P'la Bandeira.


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